Por Davi Caldas

Proponho iniciar esse texto com um breve exercício de pensamento. Farei algumas especulações. Não são ideias que podem ser provadas. Mas são possibilidades.

A Bíblia diz que no dia em que Adão e Eva pecaram, Deus passeou no jardim do Éden ao pôr do sol e os procurou. Eles se esconderam para que não fossem vistos (Gn 3:8-10). Os versos nos permitem deduzir com segurança que (1) nem sempre Deus estava no jardim com o homem em forma corpórea e visível; (2) o homem fazia outras coisas além de interagir com Deus. Sobre esse último, Gênesis 2:15, testifica que dentre as atribuições do casal estava o cultivo e a guarda do jardim. O homem se ocupava de seus próprios interesses e responsabilidades. Não muito diferente de como é hoje.

Até aqui, só o lógico e certo. Agora vem a parte especulativa: quanto tempo Deus ficava “fora”? Com que frequência Ele visitava fisicamente o homem? Quando isso ocorria?

Alguns tem afirmado que Deus visitava o homem todos os dias ao pôr do sol. Embora seja uma possibilidade, não dá para provar isso biblicamente com o verso 8 de Gênesis 3. No campo da especulação bíblica, então, eu proponho mais uma: independente de Deus visitar ou não o homem durante a semana ao fim da tarde, no sábado talvez Ele viesse sempre passar o dia inteiro com o casal.

Se isso for verdade (e parece bem plausível, já que Deus abençoou e santificou o sábado antes do pecado – Gn 2:1-3), o sábado pré-pecado ganha um aspecto muito interessante. Era o momento da semana em que o ser humano literalmente podia deixar todas as suas tarefas ordinárias de lado e passar horas inteiras com o próprio Criador, não apenas em Espírito, mas visivelmente, fisicamente, como os discípulos estiveram com Jesus anos mais tarde.

Que isso faz uma baita diferença, fica claro quando lembramos que um homem cristão não se sentirá completo sozinho numa ilha. Mesmo tendo a presença do Espírito Santo, ele sentirá falta de interação visível, audível e tátil. Fomos criados para estar na presença física das pessoas, conversar com elas, tocá-las, ouvi-las, vê-las. Não é diferente com Deus. Por isso, Moisés queria ver a glória do seu Criador (Êx 33:18-23) e Jó nutria a esperança de olhá-lo face a face (Jó 19:25-27).

Seguindo o raciocínio, o sábado se torna uma sombra do que já fora após o pecado. Sem mais poder estar na presença física de Deus, o homem precisa se envolver mais com o culto indireto. Ainda assim, a necessidade do dia não se perde. Se antes do pecado o sábado fora uma instituição de precaução que servia para manter sempre o foco do homem no Criador, não nas coisas criadas, agora passa a ser não só precaução, mas remédio. O homem, doente pelo pecado, se desligou do Criador. Sua mente agora o distrai constantemente. O memorial semanal do Criador serve para reduzir esses efeitos e prepará-lo para mais uma semana – física, mental, emocional e espiritualmente.

É óbvio, Deus quer que estejamos sempre em sua presença. Pensar no sábado como sendo o único dia em que vamos a Deus seria distorcer seu sentido. A verdade é que todos os dias podem e devem conter elementos do sábado. E feliz é aquele que pode fazer com que toda a semana seja parecida com o sétimo dia. Entretanto, nada tira do sábado seu elemento distintivo: ele é o memorial da criação e do Criador. Mesmo que essa seja a única diferença dele em relação ao restante da semana de alguma pessoa, ainda assim é uma baita diferença. É como o emblema do batismo, ou da santa ceia, ou dos jejuns. São símbolos santos. Ainda que o vinho, o pão, a água do batismo e o período sem comida sejam, em sua natureza, iguais a todos os demais vinhos, pães, águas e períodos sem comida. A diferença está na finalidade.

O sábado foi abençoado e santificado por Deus (Gn 2:1-3). Só por isso se torna distinto. Ainda que tenhamos a benção de também dedicar outros dias inteiramente às causas de Deus. Lembrar-se de Deus como Criador no santo sábado e buscar estar em sua presença de modo bem próximo é reviver o sábado pré-pecado, o sábado que também fazia parte da perfeição. Talvez, se a especulação estiver certa, reviver o período em que Deus vinha passar um dia inteiro conosco, fisicamente.

A abstenção do trabalho e afazeres seculares deve ser vista sob este prisma. Quando alguém que amamos vem nos visitar e passar um dia inteiro conosco, paramos tudo o que pode ser deixado para outro dia para fazermos coisas para essa pessoa e com essa pessoa. Nossos interesses passam a ser os dela.

Quando Jesus foi visitar Marta e Maria (presumivelmente com seus discípulos), Maria sentou-se aos pés de Jesus para ouvi-lo. Marta, ocupada em inúmeros serviços, veio ralhar com a irmã e disse a Jesus para repreender a mesma por não a ajudá-la (Lc 10:38-40). Jesus, amoroso, respondeu:

“Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas. Entretanto, pouco é necessário ou mesmo uma só coisa; Maria, pois, escolheu a boa parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10:41-42).

Para Cristo, por mais importante que os afazeres da casa e da vida pudessem ser, a maioria deles poderia esperar. Naquele momento, Ele estava ali. O centro das atenções, a melhor parte, deveria ser sua presença e tudo o que Ele falava.

O que ocorre hoje, no sábado, o mandamento que Deus formalizou por escrito com um “Lembra-te”, é que sua presença e palavras são divididas com uma série de afazeres da vida. O mundo cristão se transformou em um conjunto de Martas trabalhando ou se concentrando apenas em seus próprios interesses no dia que deveria ser tido como um memorial tão importante quanto o batismo ou a ceia. Enquanto isso, as Marias que realmente entenderam o significado do dia (não todas, pois há Marias Madalenas ainda não convertidas, cheias de vícios, adultérios e demônios), são alvo de repreensões. “Repreenda o sabatista, Jesus. Em vez de trabalhar, está aí de papo contigo, sabatizando”.

Como a ceia, o verdadeiro sábado não faz sentido quando guardado indignamente. O apóstolo Paulo diz que tomar a ceia de maneira indigna levava às pessoas à enfermidade e morte (I Co 11:26-30). Isaías dizia, da mesma forma, que jejuar com o coração cheio de maldade, egoísmo, violência, ódio e interesses mundanos, era desagradável a Deus (Is 58:3-14). Os símbolos divinos não podem competir com a reforma do interior. O verdadeiro judeu é o circunciso de coração (Rm 2:28-29 e Dt 10:16). Os símbolos devem nos ajudar a ter um melhor relacionamento com Deus e honrá-lo. Por isso devem estar fincados no amor. Sem amor, nenhum mandamento faz sentido.

O sábado do amor é o dia de descansar o espírito, de ser descanso para o próximo (inclusive e, talvez, principalmente, a sua família). É o dia de ficar com Deus e levar os demais a Deus. “Alegrei-me quando me disseram: ‘Vamos a casa de Yahweh’” (Sl 122:1), diz o salmista. Eis o sentimento do verdadeiro sabatista.

Para quem já vive todos os dias bem perto de Deus, mesmo com todos os afazeres diários, o sábado do amor é apenas uma extensão do que já se faz. Com a diferença de que é um dia mais exclusivo, portanto, potencialmente mais deleitoso. Como no caso daquele casal de namorados que conversa pela internet e telefone durante a semana, mas está o dia inteiro junto todos os domingos. Ou aquele pai ou mãe que passa a semana inteira trabalhando, saindo cedo, chegando tarde; mas em um dia do fim de semana, ele/ela está em casa com os filhos. Esse é o melhor dia para os pimpolhos. “O papai hoje vai passar o dia inteiro comigo, com minha mãe e com meus irmãos”. A criança não quer perder esse momento por nada. “Maria escolheu a melhor parte”.

O sábado do amor, no contexto da família e da Congregação, parece ser melhor que um sábado solitário. O homem é social. Todos os mandamentos são melhor guardados junto ao próximo. Na verdade, boa parte deles só pode ser guardado junto ao próximo. E mesmo os que se referem só a Deus só alcançam sua plenitude quando o enxergamos não apenas em sua face individual, mas também coletiva. Não à toa o autor de Hebreus insta que o cristão não deixe de congregar (Hb 10:25). Não à toa Deus criou cultos coletivos. Não à toa somos chamados de membros de um corpo (I Co 12:27), Jesus pede que sejamos um só (Jo 17:21-23) e o amor ao próximo é tido como a base da lei (Rm 13:8-10 e Gl 5:14). Não à toa fazer o bem ao próximo, Jesus diz, é fazer o bem a Ele mesmo (Mt 25:35-45). Deus se mescla conosco.

Na cruz de Cristo encontramos o amor tal como deve ser. A madeira vertical é o amor a Deus. A madeira horizontal é o amor ao próximo. Sem a cruz de Cristo não há lei. Sem o amor, os mandamentos são apenas uma lista morta que aponta pecados e até nos impele a pecar, já que o pecado nos inclina a isso só de ouvir uma regra (Rm 7:5-14). Mas em Cristo temos a sua salvação e o Seu Espírito para nós guiar ao cumprimento da lei, para fazer o que a lei, sozinha, não poderia fazer (Rm 7:25 e Rm 8:1-4), para nos ajudar em nossas fraquezas (Rm 8:26), para gravar a lei em nossos corações (Jr 31:33 e Hb 8:10) e fazer todas as coisas cooperarem para o nosso bem espiritual (Rm 8:27-28). Cristo liga e restaura todas as coisas (Ef 1:10 e Cl 1:20). E isso inclui o sábado.

“O sábado foi feito por causa do homem” (Mc 2:27), disse Jesus. Essas são palavras de um pai amoroso: “Fiz um dia para nós dois ficarmos mais perto e você lembrar melhor de mim”. Quem assim entende, responde como uma criança pequena: “Obrigado, papai”.

Quando Jesus repartiu pão e vinho com seus discípulos na última ceia, disse: “Fazei isto em memória de mim”. Gosto de pensar que Ele disse o mesmo sobre o sábado, quando o instituiu: “Esse dia é o símbolo da minha criação. Guarde-o em memória de mim”.