Por Davi Caldas
Um argumento muito comum utilizado contra os adventistas do sétimo dia é o de que quem guarda o sábado e crê na distinção entre alimentos puros e impuros, está obrigado a guardar todos os 613 mandamentos da Torá. O objetivo do argumento é chamar os adventistas de hipócritas ou, no mínimo, incoerentes, por não observarem a Torá por completo. O raciocínio está correto? Realmente, guardar o sábado e distinguir alimentos puros de impuros nos obriga a guardar toda a Torá? Não, esse raciocínio não está correto. Vamos entender.
Em primeiro lugar, nenhuma pessoa jamais foi obrigada a cumprir os 613 mandamentos. Nem mesmo os judeus na antiga aliança. Por uma razão óbvia: a Torá se compõe de diversos mandamentos que se aplicam a grupos distintos. Há preceitos só para sacerdotes, outros apenas para mulheres, outros somente para homens, alguns exclusivos para israelitas, etc. Muitos desses mandamentos são contextuais. Os de cunho civil/penal, por exemplo, só podem ser cumpridos na vigência do sistema teocrático israelita e no próprio Israel. Há preceitos um tanto circunstanciais também, como os que versam sobre o israelita na guerra. Em suma, até mesmo em relação à antiga aliança, a ideia de alguém estar sujeito aos 613 mandamentos é falsa.
Ora, os 613 mandamentos não precisam ser aplicáveis a todos os grupos, contextos, lugares e épocas para que a Torá seja válida. Alguns mandamentos, de fato, são de natureza geral, sendo sempre aplicáveis. Outros foram dados por Deus com finalidades aplicáveis à conjunturas específicas – fora delas, não há aplicação. Se já era assim na antiga aliança, não há porque enxergar de modo distinto na nova.
Em segundo lugar, a Torá/Lei não foi abolida no sacrifício de Cristo Jesus. Na verdade, o que ocorreu foi o oposto: ela foi confirmada e cumprida. Os sacrifícios de animais, as festas sagradas (que tinham íntima relação com o sistema sacrificial) e o serviço dos sacerdotes no templo (também ligados aos holocaustos) eram preceitos da Torá com função específica de prefigurarem a obra redentora de Cristo. Quando Cristo se sacrifica pelo ser humano, tais preceitos são cumpridos no próprio sacrifício dele (Hb 7:23-28; 9:9-14 e 23-28; 10:1-18). Uma vez que a finalidade deles era exatamente essa (representarem a Cristo e serem cumpridos nele), a obra redentora do Messias cumpre a Torá, não a anula. Anular a Torá seria justamente o oposto: fazer desses preceitos que prefiguravam Jesus fins em si mesmos.
O cumprimento dos preceitos prefigurativos da Torá na obra redentora de Cristo implica que ao aceitá-lo como nosso Senhor e Salvador, todos esses ritos são cumpridos de uma vez por todas em nossa vida. Não é mais preciso recorrer às representações, porque já temos a realidade. E isso só pode ser descrito como cumprimento da Torá, não como uma abolição. A finalidade dos ritos foi alcançada. Temos aqui, aliás, o mesmo conceito de aplicabilidade já abordado: os sacrifícios, festividades e serviços sacerdotais eram mandamentos aplicáveis ao período pré-Cristo.
Em terceiro lugar, vale ressaltar o caso da circuncisão. É provável que o argumento dos não adventistas em relação aos 613 mandamentos se baseie em Gálatas 5:3. Ali Paulo diz que quem se deixa circuncidar está obrigado a guardar toda a Lei. O que o crítico do adventismo faz aqui é trocar o termo “circuncisão” por “sábado” ou “alimentos puros e impuros”. O pressuposto é: sábado e distinção de alimentos tem a mesma natureza que a circuncisão. E se tem, deveríamos nós, adventistas, passar também pela circuncisão, tal como guardar todos os outros mandamentos da Torá.
Há uma grande falha nesse argumento. Ele ignora que a circuncisão foi instituída como um sinal da aliança de Deus com Abraão e sua descendência física (Gn 17:9-14), não como um mandamento de aplicação universal. Por essa razão, não há uma passagem do AT em que Deus exija circuncisão de seguidores não israelitas. Entretanto, ao gentio que desejava servir a Yahweh era requerido, guardar o sábado (Is 56:1-8). Ou seja, o gentio podia não ser circuncidado, não comer do cordeiro da Páscoa (só circuncidados podiam comer – Ex 12:42-49), presumivelmente não participar das demais festividades, mas devia guardar o sábado. Nota-se, assim, que o fato de guardar o sábado não o obrigava a também se circuncidar e praticar todos os ritos judeus. A conclusão é óbvia: circuncisão e alguns outros ritos eram só para israelitas. O sábado era para todos.
A razão pela qual o sábado se aplicava a todos é simples: ele foi instituído ao término da criação, quando não havia nem judeus, nem Israel, nem Abraão, nem mesmo pecado no mundo (Gn 2:1-3). De modo semelhante, a distinção entre alimentos puros e impuros remete a época de Noé, quando o homem começou a comer carne (Gn 7:2-9). Também a proibição de comer sangue é da época de Noé (Gn 9:4-5) e foi, aliás, explicitamente mencionada pelos apóstolos como ainda válida (At 15:20 e 29). São preceitos, portanto, que possuem natureza muito distinta da circuncisão, esta sim dada exclusivamente aos israelitas.
O que fica claro é que a Torá continua válida, mas nem todos os mandamentos possuem natureza tal que são aplicáveis a qualquer contexto. Os que são aplicáveis a todos os contextos e, portanto, também aos cristãos na nova aliança são geralmente chamados de morais. Eles têm a ver com a relação do homem com Deus, com o próximo e com a própria vida. Estão baseados diretamente no amor e em objetivos práticos; portanto, devem continuar sendo praticados por nós. O decálogo é um exemplo dessa espécie de mandamentos. Todos eles têm origem anterior à Torá (conquanto sua formalização escrita tenha sido dada a Moisés) e não possuem ligação exclusiva com a teocracia judaica ou o sacrifício de Cristo Jesus. Por isso são universal e eternamente aplicáveis.
Uma vez que só podemos cumprir os mandamentos que nos são aplicáveis (obviamente), podemos dizer que cumprimos toda a Torá quando cremos em Cristo e praticamos os mandamentos de aplicação universal e eterna (em especial, os morais). Não é necessário (nem logicamente possível) guardar todos os 613. De fato, esse é o argumento de Paulo (Rm 13:8-10 e Gl 5:14), o qual ecoa os próprios ensinos de Jesus sobre a essência da Torá e a essência da salvação em seu sacrifício (Mt 22:36-40; Mc 12:28-34; Lc 10:25-28; Jo 13:34-35; Mt 12:7; Jo 17:3; Jo 2:19-22; Jo 3:16). Em suma, os adventistas e nenhum outro cristão que siga o sábado e a distinção entre os alimentos puros e impuros está obrigado a guardar os 613 mandamentos. Isso é um absurdo teológico.
fevereiro 10, 2019 at 3:51 pm
Boa tarde! O seu trabalho esta muito bem feito! Parabens! Mas ele acabou de ser refutado pelas Testemunhas de Jeová neste link: https://cronicasdonovomundo.wordpress.com/2019/02/10/refutacao-a-igreja-adventista-sobre-as-613-leis-e-o-sabado/
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fevereiro 11, 2019 at 12:38 am
Prezado Fernando,
Seguem as respostas:
1) O fato de Israel constituir o povo de Deus não exclui a esfera individual. A relação indivíduo x Torá sempre existiu. E o fim de Israel como nação não altera essa relação naquilo que concerne ao indivíduo. Altera apenas o que concerne à nação. As obrigações do indivíduo com Deus não dependem da existência de uma entidade político-administrativa com terras e governo teocrático.
2) O texto desse blog TJ trabalha com o pressuposto de que se todos os mandamentos não forem aplicáveis, a Torá foi abolida. Ora, os judeus da diáspora nunca pensaram que a Torá foi abolida porque se tornaram cativos na Babilônia ou porque sua cidade e seu primeiro templo foram destruídos, impossibilitando o cumprimento de todos os mandamentos relativos à nação. Tampouco os profetas da época disseram algo do tipo. Também nenhum judeu supôs isso à época do império romano, quando leis civis, por exemplo, não eram cumpridas exatamente como descritas na Torá. Seu pressuposto é tirado de onde?
3) Não, o fato de vivermos em um local onde as pessoas trabalham aos sábados não nos faz transgressores, ainda que usemos de serviços imprescindíveis nesse dia. Davi Caldas explicou isso nesse texto: http://mundoanalista.blogspot.com/2015/02/e-possivel-realmente-guardar-o-sabado-e.html
4) Sobre a interpretação de Efésios 2:15, nós explicamos no seguinte texto: https://reacaoadventista.com/2019/01/24/o-problema-sempre-foi-a-tradicao-nunca-a-lei/
Está no tópico “Lei dos Mandamentos em Ordenanças”. O texto não se refere à Torá, mas tradições humanas, interpretações errôneas e extensões orais que separavam judeus e gentios.
5) Não existe uma só interpretação de Colossenses 2:16. O autor desse texto mesmo, Davi Caldas, não concorda com a interpretação de Andrews. E boa parte dos teólogos adventistas atuais também não. Um dos grandes teólogos adventistas que a defender outra interpretação desse texto é Samuele Bacchiocchi. O próprio Comentário Bíblico Adventista e o Tratado de Teologia fazem menção à outra interpretação possível do texto. Nessa outra interpretação, entende-se que Paulo não está interessado em dizer o que foi abolido ou não, mas insistir que um determinado grupo herético não deveria servir de base de julgamento para ninguém. É essa outra interpretação que o Caldas defende, conforme pode ser lido nesse texto:
https://reacaoadventista.com/2018/11/24/os-textos-que-supostamente-anulam-o-sabado/
6) A grande incoerência de quem diz que a Lei foi cumprida no sentido de não mais precisarmos cumpri-la é que essas mesmas pessoas vão concordar que não matar, não roubar, não furtar, honrar pai e mãe, etc. continua em vigor. Ora, isso são mandamentos da Torá. É apenas um jogo semântico dizer que isso não seguimos mais os preceitos da Torá, mas o Espírito, ou a Lei de Cristo. Se o Espírito e a Lei de Cristo trazem os mesmos preceitos da Torá, segue-se que a Torá permanece sendo seguida. E o fato de parte dela ser cumprida no próprio Cristo (a saber, os rituais que prefiguravam seu sacrifício) não implica que não haja uma parte que cabe a nós cumprirmos (dentre os quais se encontram os precietos do decálogo, cuja base é o amor a Deus e ao próximo).
7) É importante destacar que os adventistas não enxergam o Comentário Bíblico Adventista como inspirado e inerrante. Ele é uma obra teológica humana, sujeito à falhas e consertos. Não há, portanto, problema em adventistas discordarem dele. Uma vez que a nossa única regra de fé e prática são as Escrituras, as abordagens teológicas podem evoluir com o tempo, a fim de que imprecisões sejam reparadas. A introdução de nossas 28 Crenças Fundamentias fala sobre isso. O já citado Bacchiocchi, em sua tese de doutorado sobre o sábado, discorda da interpretação tradicional de Colossenses 2:16, conforme já citado. Outro teólogo respeitadíssimo, Jacques Doukhan, discorda do Comentário Bíblico Adventista a respeito da “teologia da subistituição”, que é defendida por boa parte dos teólgos da IASD. O amigo TJ trata o CBA como se fosse divinamente inspirado e inerrante, quando os próprios adventistas não o enxergam assim.
8) Sobre a expressão “obras da Lei”, tratamos dela nesse texto:
https://reacaoadventista.com/2019/01/24/o-problema-sempre-foi-a-tradicao-nunca-a-lei/
9) Sobre a circuncisão fazer parte da Torá, isso não muda o fato de que era um mandamento para israelitas. E esse é o ponto do nosso artigo. Nunca foi mandamento para gentios, exceto se o gentio assim o quisesse. Ler esse texto, tópico da circuncisão: https://reacaoadventista.com/2019/01/24/o-problema-sempre-foi-a-tradicao-nunca-a-lei/
10) Sobre o argumento de Jesus a respeito da circuncisão no sábado, esse texto também fala disso: https://reacaoadventista.com/2019/01/24/o-problema-sempre-foi-a-tradicao-nunca-a-lei/
Aliás, aconselhamos ler todos os tópicos desse texto à respeito das controvérsias de Jesus sobre o sábado.
11) O sábado ervia de sinal entre Israel e Deus porque Israel era o único povo que reconhecia a Yahweh como Deus. Mas o sábado era anterior a Israel. O sábado, portanto, não foi criado exclusivamente para Israel ou por causa de Israel. O sábado foi dado ao homem e englobado pela Torá. Circunstancialmente, como só Israel adorava Yahweh como povo, Deus usou o sábado como sinal de distinção. Esses textos falam sobre isso:
https://reacaoadventista.com/2018/09/01/yahweh-o-deus-criador/
https://reacaoadventista.com/2017/02/25/o-casamento-e-o-sabado/
12) O texto de Isaías 56:1-8 não fala só de eunucos. Fala de eunucos E estrangeiros. São dois grupos distintos. Ademais, em nosso artigo, usamos Isaías 56 não para provar que o sábado é para todos hoje, mas que era para todos na antiga aliança. Embora creiamos que ele seja para todos hoje, não usamos Isaías 56 para provar isso, mas sim Gênesis 2:1-3. Sobre os sacrifícios e holocaustos, eles não são mais obrigatórios hoje porque tinham função exclusiva de apontar para Cristo e nada mais. Não é o caso do sábado, que tem prioritariamente função de descanso para o ser humano e memorial da criação e Deus como Criador.
13) O texto de Êxodo 20:8-11, afirma que o estrangeiro em uma casa de israelitas não deveria trabalhar aos sábados. Assim, circuncisos que queriam se unir ao Senhor e/ou ao povo do Senhor deveriam respeitar o Sábado.
14) Sobre gênesis não conter uma ordem clara e direta para Adão e Eva guardarem o sábado, isso se baseia na falácia do apelo ao silêncio. Tratamos um pouco dessa falácia nesse texto: https://reacaoadventista.com/2017/04/30/um-estudo-probabilistico-sobre-o-sabado/
15) Sim, o texto de Gn 7:2 tem a ver com alimentação também. Os animais impuros para sacrifício o eram justamente porque eram impuros para alimentação. Não serve de sacrifício representativo de Jesus o animal que não serve pra o nosso organismo. Porque assim como os animais sacrificados eram, em parte, comidos, “comemos” da carne de Cristo. E assim como o animal do sacrifício servia para alimento, Cristo é nosso alimento espiritual. O sacrifício animal devia representar corretamente o de Cristo. Daí eles precisarem ser sem mácula, por exemplo. Ressaltamos, entretanto, que do fato de animais impuros para alimentação não servirem para sacrifício não se depreende que todos os aniamis puros para alimentação serviam para sacrifício.
16) A passagem de Gênesis 9:3 e mais diversas passagens sobre o tema “alimentos puros e impuros” são tratadas nos seguintes textos:
https://reacaoadventista.com/2018/11/11/por-que-a-maioria-dos-cristaos-nao-cre-na-distincao-biblica-entre-alimentos-puros-e-impuros/
https://reacaoadventista.com/2019/01/09/treplica-sobre-a-questao-dos-alimentos-puros-e-impuros/
17) Escrevemos sobre o Concílio de Jerusalém nesse texto:
https://reacaoadventista.com/2018/12/22/o-que-o-concilio-de-jerusalem-atos-15-nos-ensina/
É apelo ao silêncio dizer que porque não se falou em sábado, ele não deveria ser guardado. Se levarmos isso ao pé da letra, pense em quanta coisa não foi mencionada em Atos 15, como se abster da bebedeira e de desonrar os pais, por exemplo. Então, tudo isso pode? Não tem lógica.
Atenciosamente,
Equipe Reação Adventista.
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setembro 25, 2019 at 11:45 pm
A distinção de animais puros e impuros, penso que nos leva à época de Abel, os sacrificios dedicados ao Senhor por este filho de Adão seriam feitos já com animais puros.
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novembro 9, 2019 at 1:07 pm
Mas porque que o proprio Jesus cristo no novo testamento nao cumpriu o sabado? como é que isso se explica?
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novembro 9, 2019 at 3:21 pm
Essa é a visão bíblica ou a visão dos fariseus?
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