Por Davi Caldas

Navegando pelo Instagram, topei com o seguinte pensamento escrito por um pastor: “O voto revela muito do caráter! Votar em quem roubou e foi condenado em três instâncias, votar em quem comprou voto dos deputados (mensalão), votar em quem diz que a pauta da família está ultrapassada, votar em quem defende aborto, mostra que seu caráter não é cristão!”.

O pastor está se referindo, evidentemente, ao voto no Lula, ex-presidente, condenado em três instâncias por participação no maior caso corrupção do país, preso durante mais de um ano e solto pelo processo ter sido anulado pelo STF (o que não significa inocentado; o processo apenas vai recomeçar). Lula agora é candidato à presidência nas eleições que ocorrerão em outubro desse ano (2022).

Mas e então? Voto revela caráter? Voto define quem é cristão e quem não é? Acredito que a resposta seja mais complexa que um mero “sim” ou “não”. Vamos imaginar algumas situações.

Situação 1: O indivíduo que vai votar no Lula sinceramente não se sentiu convencido das acusações de corrupção contra o ex-presidente. Ele realmente acha que o Lula foi vítima de juízos parciais e que é inocente. Também não se sentiu convencido de que o candidato é realmente contra a família e a favor do aborto. Não importa aqui se o indivíduo chegou a essa conclusão por ser tolo, por ter sido enganado por alguém mais esperto com uma boa retórica ou porque realmente o Lula é inocente, a favor da família e contra o aborto. O ponto é: o indivíduo está convencido da inocência e dos bons valores do ex-presidente. Ora, se este é o caso, ainda que Lula seja mesmo um corrupto e que defenda pautas anticristãs, o máximo que podemos dizer a respeito deste eleitor é que ele está equivocado. Não podemos atribuir mau-caratismo a alguém que realmente crê na inocência e no caráter de outrem.

Situação 2: O indivíduo que vai votar no Lula reconhece que ele é corrupto e, no mínimo, não leva muito a sério as pautas cristãs. No entanto, acredita sinceramente que Bolsonaro, o atual presidente e candidato à reeleição, também é corrupto, além de um mau gestor e pouco confiável em relação à estima pela democracia. Colocando na balança, ele sente ser mais prejudicial e perigoso à nação reeleger Bolsonaro do que Lula. Assim, pensando no mal menor, escolhe Lula. Mais uma vez: não importa aqui como a opinião foi formada. O ponto é: a percepção do eleitor é está e é sincera. Neste caso, também não parece ser correto classificar o eleitor como mau caráter. Pode-se discutir se ele é tolo, se estudou pouco, se foi enganado e até se os opositores do Lula não estão sendo convincentes em sua argumentação. Mas não há aqui um problema de caráter.

Situação 3: O indivíduo que vai votar no Lula crê que tanto Bolsonaro quanto o petista são corruptos e péssimas opções. No entanto, o sujeito é de esquerda, ao menos na parte econômica. Acredita que o livre mercado não é suficiente para ajudar os pobres e que o Estado precisa intervir mais. Ao fazer um balanço, crê que os pobres se beneficiaram mais nos governos do PT do que no governo Bolsonaro. Além disso, ele não vê risco de golpe por parte do PT. Para ele, uma vez que isso não aconteceu nos 13 anos de governo Lula e Dilma, é um devaneio achar que existe essa possibilidade agora ou mesmo uma intenção do partido nesse sentido.

Ora, sabemos que para um sujeito de esquerda, é difícil votar em alguém de direita, ainda que seja honesto. De igual forma, é difícil para alguém de direita votar em alguém de esquerda, mesmo também tendo uma vida limpa. Assim, numa disputa entre dois candidatos considerados ruins, é sempre provável que o eleitor escolherá segundo sua vertente ideológica. Esse é o “mal menor” para ele. Portanto, se este eleitor escolhe o Lula, mais uma vez, não há mau-caratismo. Há, no máximo, uma decisão equivocada.

Tudo o que falei aqui serve para o outro lado. É comum que crentes de esquerda considerem mau-caratismo votar em Bolsonaro. No entanto, se a percepção do eleitor de Bolsonaro é de que o mesmo está fazendo uma boa gestão, e/ou de que é inocente de insinuações de corrupção lançadas contra ele, e/ou de que o pensamento de direita é melhor que o de esquerda, e/ou de que Lula é corrupto e muito perigoso, o voto em Bolsonaro pode ser tudo, menos evidência de mau-caratismo. Mas, então, quando o voto indica mau-caratismo? Vamos à próxima situação.

Situação 4: o indivíduo sabe que seu candidato é corrupto e tem pautas anticristãs. Mas o apoia para benefício próprio, e/ou por estratégia ideológica, e/ou porque apesar de se considerar cristão, não considera importante/necessário se pautar pela Bíblia no dia a dia. Esse indivíduo, por vezes, até mente de modo consciente contra o opositor. Ele ou não se incomoda com a própria mentira ou acha que os fins justificam os meios. Além disso, sua preocupação não é realmente o país ou o próximo, mas aquilo que a vitória do candidato trará para ele. Isso é um mau caráter. Há eleitores assim? Sem dúvida. São a maioria? Não sei e não tenho como saber. Suspeito que não.

Existe uma quinta situação. E ela é difícil de classificar. Trata-se do fenômeno chamado autoengano. Muitas vezes a pessoa quer acreditar em algo e acaba convencendo a si mesma. Não deixa de ser uma espécie de desonestidade. No entanto, até que ponto isso é suficiente para julgar o caráter de alguém? Quantas vezes não nos enganamos por um tempo em tantas coisas? Certamente é um erro e, dependendo da natureza do assunto, pode ser um erro muito grave. Mas será que todo o autoengano é suficiente para considerar alguém mau caráter e não cristão? Receio que se essa for a régua, todos nós manifestamos isso com frequência. Eu mesmo consigo lembrar de algumas ocasiões em que pratiquei autoengano. Hoje percebo e me arrependo. Mas demorou. E hoje? Será que não estou me enganando em algo? Quanto tempo demorará para eu perceber e/ou reconhecer? Isso me faz um não cristão? Dependendo de onde eu colocar a régua, estarei me condenando também.

Cabe ressaltar que o autoengano é mais fácil e menos perceptível ao próprio indivíduo na medida em que há fortes razões para seguir esse caminho. Pense na própria situação polarizada em que vivemos. Para o eleitor de esquerda, a direita é um grande mal. E para o eleitor de direita, a esquerda é um grande mal. Há, portanto, uma forte razão para que os dois tipos de eleitor queiram ver seu próprio candidato como honesto, competente e confiável, e o candidato adversário como um monstro. Do contrário, torna-se mais difícil se defender do espectro adversário. Afinal, como posso fazer isso se meu candidato for “mau” e o do adversário for “bom”? É difícil fechar essa conta.

Tomemos outro exemplo. Bolsonaro recebe acusações o tempo todo. Quem o apoia geralmente julga essas acusações como falsas, afirmando que não se sustentam. Suponhamos que bolsonaristas estejam certos: até agora todas as acusações foram falsas. Se aparecer mais uma, qual é a tendência dos seus apoiadores? Crer que esta também é falsa, claro. É natural. Mas e se dessa vez a acusação for verdadeira? Sem dúvida, alguns reconhecerão e dependendo da gravidade da mesma, deixarão de apoiar o atual presidente. No entanto, outros não se convencerão. Afinal, foram tantas mentiras de tantos lados! Essa também deve ser. Aqui há o risco de autoengano.

O pensamento vale para lulistas. Na verdade, é exatamente isso o que acontece com muitos deles. Entraram na espiral do autoengano e não conseguiram mais sair. O que pode ter sido uma desonestidade no início, agora tornou-se uma prisão. O sujeito agora é uma vítima da mentira que contou a si mesmo lá atrás.

Por que toda essa análise é relevante? Primeiro, porque reconhecer a complexidade da situação evita maus julgamentos. Segundo, porque se um voto que eu julgo errado não está baseado em mau-caratismo, então a maneira de combater esse problema não é taxar o eleitor de mau caráter. Não se combate câncer com remédio de gripe. Terceiro, se nosso futuro depende de um instrumento (o voto) que pode estar fundamentado em tolice, boa retórica de enganadores, falta de opção melhor, medo, autoengano, e que mesmo que não se baseie em nada disso ainda pode dar errado, e que sempre desagradará grande parte da população, então, o eleitor adversário não é necessariamente um inimigo. Ele é uma vítima. Pensemos nesse terceiro ponto.

O voto definirá quem mandará em nossa vida e gastará parte do nosso dinheiro. Mesmo que alguém não concorde com isso e que se recuse a votar, o voto de quem foi as urnas decidirá essas questões para o discordante. Em suma, todos estão obrigados a submeter sua vida e sua carteira a certos indivíduos. O problema, portanto, não é quem vota, mas sim o próprio sistema de votos. O sujeito que não gosta do político A e vai votar no B não é seu inimigo. Ele apenas é uma vítima do sistema. E se você, em oposição, não gosta do B e vai votar no A, idem.

Agora, façamos um exercício de raciocínio. Se em vez de taxar um grupo de mau-caráter e não cristão, passássemos a ensinar que todos são vítimas desse sistema? O que aconteceria? Acredito que em alguns anos, os indivíduos se tornariam mais independentes do Estado. O primeiro passo para a independência é reconhecer sua escravidão. E eu pergunto: o que é mais benéfico para o poder dos governantes? Dois grupos brigando, achando que o outro lado é o inimigo, ou uma grande multidão ciente de que o Estado é o inimigo? E quantos governos titânicos e corruptos se mantém por muito tempo com um povo plenamente consciente de sua escravidão?

Finalmente, vamos pensar do ponto de vista cristão. O que é mais bíblico? Julgar segundo a aparência ou julgar segundo a reta justiça (Jo 7:24)? Incentivar um clima de inimizade ou buscar a paz para com todos (Mt 5:22; Lc 9:55; Rm 12:18; Hb 12:14)? Ser benevolente com o ignorante ou ser rápido em condenar (At 17:30; Rm 2:1-3; I Tm 1:13)? Ensinar que confiar no homem e nos governos é tolice ou ensinar que nossa esperança é o político A, B ou C (Sl 146:3-4; Is 31:1-3; Jr 17:5-10; Jo 2:23-25)? Almejar que Deus nos governe ou aspirar governos humanos (I Sm 8; Lc 4:5-7; Jo 18:36-38)? Praticar assistência voluntária ao próximo ou esperar que alguém faça por nós (Mc 12:41-44; Lc 10:25-37)? A meu ver, seguir esses princípios é mais eficaz do que jogar todo o eleitorado adversário no saco dos mau-caráter. E, certamente, é mais correto.

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