Por Patrike Wauker
Machado de Assis, um de nossos grandes gênios, escreveu um brilhante conto em que narra uma aventura vivida por Fernão Mendes Pinto. Nessa história, o viajante português, com um amigo, encontra um homem chamado Patimau, que consegue convencer uma multidão de que os grilos originam-se do ar e das folhas de coqueiros, logo depois encontra um outro homem chamado Languru, que conseguiu demonstrar a uma outra multidão que o princípio da vida futura se encontrava em uma gota de sangue de vaca. Fernão e seu amigo descobrem, então, que esses homens eram alunos de um Bonzo, que ensinava o segredo do convencimento:
“[…] se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles”.
A ideia do Bonzo é cínica, mas guarda certa ligação com a realidade. Aparentemente, as pessoas não se importam em acreditar em coisas que são verdadeiras e sim em coisas que são agradáveis. Nesse sentido, mais vale a ênfase que se faz ao falar algo, do que aquilo que exatamente se fala. Aliás, o mundo ficcional da obra machadiana é justamente este: um mundo de homens que escolhem no que acreditar. E, como o Pai de Teoria do Medalhão, aconselha seu filho Janjão: “Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente”. Um autor contemporâneo, Theodore Dalrymple, vai na mesma direção ao declarar que
“Quando se permite que o emocionalismo transborde para a esfera das políticas públicas, não é provável que disso saia algo de bom, exceto por acaso.
O sentimentalismo é a expressão da emoção sem julgamento. Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade” (Podres de Mimados, p. 87).
Esse mundo sentimental pode ser bem explicado pelo vídeo publicado pela youtuber Emanuelle Sales (aqui) no qual se fala sobre o Evangelho e o movimento LGBTQ+ (se à sigla faltou alguma letra de alguma minoria, perdão, meus caros). Para um desavisado, é um vídeo que defende a ideia de que devemos amar os homossexuais (algo perfeitamente correto, por sinal); entretanto, mais do que isso, a digital influencer na verdade relata sobre o seu apoio ao movimento que, segundo ela, passa por sofrimentos que os heterossexuais não passam, logo merecendo um cuidado mais destacado (e seria nessa busca que os grupos LBTQ+ estariam engajados).
O fenômeno “comentarista de Youtuber” é algo que comprova a teoria do Bonzo. Hoje, se alguém tem muitos seguidores, ele, imediatamente, precisa levantar alguma bandeira em defesa de supostas minorias; depois, precisa dar opinião sobre os mais diversos assuntos, mesmo que sejam temas complexos e que o comentarista seja despreparado. Mas ninguém precisa se preocupar, já que a argumentatividade em nossos tempos é conquistada com um simples apelo ao sentimentalismo. Salles, por exemplo, publica vídeos com títulos interessantíssimos: “Como curei a enxaqueca”, “Chocante quantas mentiras a gente acredita” e “O que Deus fez na minha autoestima”. Essa mesma youtuber, contudo, preocupa-se também com temas polêmicos que envolvem os cristãos, como o caso da relação Evangelho e LGBTQ+.
Como Machado já nos revelou, ideias não precisam ser bem explicadas, e comprovadas, para que as pessoas acreditem nelas. Na verdade, basta que as afirmemos com certeza, e as pessoas acreditarão que os grilos nascem do ar e que a vida eterna está contida em uma gota de sangue de vaca. É apenas afirmar algo enfaticamente que 2 mil pessoas acreditarão no seu vídeo.
Voltemos ao vídeo em questão. Não há dados, não há referência a pesquisas, não há discussão de material a favor e contra. Nada. Há apenas apelo clichê e sentimentalista de alguém que se acha capaz o suficiente de demonstrar às pessoas que elas estão “erradas”. Mas erradas em quê? Segundo Salles, erradas em seu modo de tratar as minorias LGBTQ+. O argumento principal dela, que não é um argumento, se faz por meio de uma ilustração: se você encontrar duas casas pegando fogo, a qual das duas você se preocupa em dar especial atenção? Obviamente, à casa que está pegando fogo. Ora, a comunidade LBTQ+ está sofrendo mais que os heterossexuais, por isso devem ter uma atenção especial.
Acima usei o termo “erradas”, entretanto, essa não é a palavra correta, pois essa ênfase na ilustração, em detrimento de algo mais argumentativo, demonstra que não muito conteúdo cognitivo em questão.Novamente, minha tese: o que o a youtuber está fazendo não é defender uma ideia, mas apenas querendo constranger os discordantes e apresentar-se como uma pessoa politicamente correta.
Talvez, segundo ela, seu posicionamento seja fruto da criação que recebeu, que sempre a incentivou a ter uma postura de acolhimento e amor com todas as pessoas, independente de quem fossem. Seu lar não era preconceituoso, machista e julgador. O interessante é que, nesse momento, ela está criando uma falsa dicotomia. O pensamento por trás de suas frases é: as pessoas que agem com os grupos LGBTQ+ como eu acho que deveriam agir são boas pessoas que tiveram boa educação; já as pessoas que não lidam com essas pessoas do jeito que eu defini que devem agir são pessoas horríveis e reprováveis.
O mesmo tipo de pensamento se revela em outro momento, quando informa-nos que vários curiosos perguntam se ela é feminista. Salles, então, nos conta que é humanista, pois defende os direitos humanos. Ou seja, se você não defende o movimento LGBTQ+ isso é demonstração perfeita de que você não defende os direitos humanos. Que menino mau você é!
Não sei se ela, ou alguém, percebeu que isso é uma postura extremamente julgadora e condenatória. Depois de assistir ao vídeo, a única conclusão que se pode tirar é que ou você está com Emanuele Salles, ou você é uma péssima pessoa. Ela não refletiu que o movimento LGBTQ+ não defende apenas as pautas do direito dos homossexuais, ou de que a própria Constituição já defende os direitos dos homossexuais; ela não discutiu sobre os problemas de um cristão apoiar uma causa que também promove a defesa do casamento gay; no vídeo não se argumenta sobre a diferença entre amar o pecador e não concordar com o pecado; ela nem ao menos tenta mostrar como o cristão pode lutar pelos direitos dos gays serem gays, sem apoiar o pecado da prática homossexual. Em suma, o vídeo é uma reunião de clichês, fundamentado em uma pobre ilustração, sem dados argumentativos consistentes, que acaba por apenas demonizar qualquer um que venha a discordar da opinião apresentada.
Eu não acho que Emanuelle Sales seja uma pessoa ruim, não acredito que ela seja uma cristã desagradável, ou que seja o anticristo. Eu apenas acho que ela cometeu o horrível e fatal erro de acreditar em suas próprias ideias, sem antes analisá-las. Ela é uma aluna inconsciente do Bonzo, mas também faz parte da multidão inconsciente. É apenas sentimentalismo ideologizado.
julho 7, 2020 at 11:17 pm
Na condição de escritor sem estilo, medíocre e inédito, fiquei com muita inveja desse texto “enxugatissimo.” A forma é tão indispensável como o conteúdo, sim senhor.
Quanto ao conteúdo – quem sabe porque autor (tu) e leitor (eu) são religiosos e pertencem a mesma denominação – durante a leitura fiquei refém de um exemplo ou analogia, não sei.
Eu vi, através do texto, quando os anacrônicos apelos tão usados em nossas semanas evangelistas, os emotivos primários se apresentarem candidatos ao batismo que, logo ali adiante, se tornam candidatos a desistência. Tudo fica igual quando autores e leitores se entregam às fantasias. Li num quadrinhos pregado em parede de casa suspeita, o seguinte: ” O melhor na vida são as ilusões. ” Ainda não concordei, quem sabe algum dia desses. …
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julho 8, 2020 at 12:17 pm
Os grupos LGBT+ não buscam ser tratados diferentes dos héteros , muito pelo contrário inclusive, o que querem é ter os mesmos direitos , e mesmas possibilidades. Do ponto argumentativo da religião não falo nada, pois não é meu lugar de fala.
De fato, o fenômeno dos Youtubers é preocupante, mas isso se alinha com a falta de vontade das pessoas de pesquisarem por si só , ou pedir fontes.
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