Por Davi Caldas

O ser humano tende a extremos. Pelo menos essa tem sido a minha percepção há muitos anos. E talvez eu perceba isso de modo bem vívido por conta de minha natureza calma e ponderada. Não, não é um autoelogio, mas apenas uma descrição. No geral, na maioria dos assuntos que não exigem uma posição extrema, eu não consigo aderir a um extremo. Aqui é necessário esclarecer, antes de continuar: que assuntos exigem posições extremas? Aborto é um exemplo. Do ponto de vista estritamente teológico (que é o foco dessa página desde sempre), só há duas opções: ou é pecado ou não é. E por que é assim? Porque ou o embrião/feto é uma vida humana ou não é. Logo, ou o aborto mata uma vida humana ou não mata. Não há meio termo.

No entanto, muitas posições não só permitem um meio termo como possuem diversos matizes de cinza entre o preto e o branco. Quase sempre fico nesse meio cinzento. Uma frase que gosto é: “Sou liberal demais para os conservadores e conservador demais para os liberais”. Acho que ela me define em muitas questões na vida.

Isso me traz benefícios e malefícios. Um dos benefícios é que geralmente consigo entender bem como pensam os dois lados e, ao mesmo tempo, entender bem quais são os problemas lógicos, morais, bíblicos e teológicos de aderir a um dos extremos. Daí decorre o fato de que geralmente consigo ser bastante conciliador, bem como evitar vícios baseados em extremos de pensamento.

Um dos malefícios, no entanto, é que quem é ponderado acaba, em algum momento, sendo julgado como “em cima do muro”, “covarde”, “isentão”, etc. Daí geralmente eu buscar tomar muito cuidado com as palavras. Extremistas tendem a interpretar da maneira como querem. E, nessa brincadeira, você acaba sendo odiado pelos dois lados.

O que posso dizer é que nem sempre o meio termo é o “muro de Satanás”, como comumente se apregoa. Às vezes, o meio termo é o “alvo bíblico” e os extremos são desvios. Por exemplo, na teologia, um extremo conta com a Teologia da Libertação, a Teologia da Missão Integral, o relativismo da verdade e da moral, influências do feminismo moderno (2º e 3º ondas), influências do marxismo, defesa do aborto, mentalidade desigrejada, etc. É o extremo liberal. Mas há um outro extremo que conta com legalismo, tradicionalismo antibíblico, exclusivismo, fanatismo, pensamento anticientífico, menosprezo da lógica, ênfase em assuntos irrelevantes, pouca (ou nenhuma) ação de assistência social, perfeccionismo, Teologia da Última Geração (TUG), etc. É o extremo tradicionalista.

Pergunto: há como ser coerente com a Bíblia escolhendo um desses extremos? Não, não há. Em casos como esses, bater nos dois extremos é nossa obrigação teológica, e ficar no meio termo é andar no caminho bíblico. Então, estar no meio termo, nos tons cinzas, nem sempre é estar no muro.

Há um trecho do livro “Cristianismo Puro e Simples”, de C. S. Lewis, que possui uma reflexão interessante sobre essa questão dos extremos. Falando sobre como devemos lidar uns com os outros, ele diz:

“Quando você se flagrar tentando transformar seus filhos, alunos ou até vizinhos em pessoas exatamente iguais a você, lembre-se de que Deus provavelmente não quis que eles fos­sem assim. Você e eles são órgãos diferentes, com fina­lidades diferentes. Por outro lado, quando você se sentir tentado a não se incomodar com os problemas de alguém porque eles ‘não lhe dizem respeito’, lembre-se de que, apesar de essa pessoa ser diferente de você, ela faz par­te do mesmo organismo. Se esquecer esse fato, você se tornará um individualista. Se, por outro lado, esquecer que ela é um órgão diferente, quiser suprimir as diferen­ças e fazer todas as pessoas iguais, tornar-se-á um totali­tário. O cristão não deve ser nem uma coisa nem outra. Sinto o forte desejo de lhe dizer — e acho que você sente a mesma coisa — qual dos dois erros é o pior. Essa é a estratégia do diabo para nos pegar. Ele sempre envia ao mundo erros aos pares — pares de opostos. E sempre nos estimula a desperdiçar um tempo precioso na tenta­tiva de adivinhar qual deles é o pior. Sabe por quê? Ele usa o fato de você abominar um deles para levá-lo aos poucos a cair no extremo oposto. Mas não nos deixemos enganar. Temos de manter os olhos fixos em nosso obje­tivo, que está bem à nossa frente, e passar reto no meio de ambos os erros. Nem um nem outro nos interessam”.

O insight de Lewis é claríssimo. E como é de corar as bochechas perceber que tantas pessoas caem como patinhos em uma tática satânica tão boba! Não, você não precisa se enquadrar num extremo só porque combate o outro. Não é porque eu sou contra o liberalismo teológico que vou aderir ao legalismo teológico. Não é porque sou contra a maioria esmagadora das coisas que esquerdistas pensam e fazem, que serei a favor de tudo o que direitistas pensam e fazem.

Falando especificamente sobre política, ter esse bom senso é o que vai diferir a pessoa que defende um lado político do indivíduo que idolatra um lado político. E sim, isso pode acontecer em qualquer um dos lados. Já postamos alguns textos ao longo da história do Reação Adventista falando sobre como a idolatria política e a ideologização do evangelho podem atingir esquerdistas e direitistas, liberais e conservadores (ler aqui, aqui e aqui, por exemplo). A idolatria política é uma constante humana. E como isso acontece? Sempre aos poucos.

O indivíduo geralmente começa defendendo determinado conjunto de princípios e, por conseguinte, atacando as ideias do lado oposto. Até aí, nenhum problema (desde que, claro, esse conjunto de princípios seja bíblico). Mas, então, ao focar em demasia nessa guerra, ele acaba vendo-a como “o grande conflito entre o bem e o mal no mundo”. É aqui que se inicia a religião política, da qual já falamos também em outros textos neste blog (esse, por exemplo).

De maneira resumida, “religião política” ou “religião secular”, conceitos utilizados por grandes intelectuais conservadores como Eric Voegelin, Raymon Aron, entre outros. A religião política é a apropriação de diversos conceitos próprios da religião tradicional (em especial, judaísmo e cristianismo) por movimentos políticos, tais como as noções de um pecado original, uma luta global contra um grande mal, a necessidade de uma redenção para toda a humanidade, um “Apocalipse” e um novo mundo. Tudo isso é, obviamente, re-significado em termos políticos e terrenos. Assim, a redenção passa de Deus para as mãos da humanidade e, em especial, para as mãos de um grupo específico de ideólogos e políticos.

Embora, na política moderna, esse tipo de apropriação tenha se iniciado por meio de movimentos secularistas e anticlericais a partir do período iluminista, não se restringe apenas a ideologias ateias, anti-religiosas e anticristãs. Se, por um lado, movimentos e ideologias políticas como o positivismo, o jacobinismo francês, o marxismo, o fascismo italiano, o nazismo alemão, a Teologia da Libertação e a Teologia da Missão Integral tentaram ou combater o cristianismo ou transformá-lo em política (re-significando o evangelho para se adequar às suas pautas e cosmovisão), por outro lado, muitos movimentos (e indivíduos) de cunho conservador, antimarxista, anti-revolucionário e/ou pró-liberalismo econômico, transformaram a luta contra essas ideologias numa outra religião.

Então, voltando ao caminho do idólatra político, o indivíduo começa a entender sua visão política como o evangelho que redimirá o mundo. Pouco importa, neste ponto, se o evangelho do indivíduo é o marxismo, ou o antimarxismo, o conservadorismo ou o liberalismo. Ao dar esse passo, o indivíduo trocou de religião. Tirou Cristo do centro e desprezou a doutrina bíblica.

O próximo passo é começar a defender com unhas e dentes políticos e ideólogos que possuem a sua visão. Como há uma guerra ideológica em curso e ela é entendida como sendo “o grande conflito entre o bem e o mal no mundo”, a tendência é o indivíduo adotar cada vez mais uma visão maquiavélica: os fins justificam os meios. Para que o outro lado não vença, vale tudo minimizar ou até justificar todos os pecados dos meus políticos e ideólogos de estimação e, ao mesmo tempo, apontar e criticar ferrenhamente cada pecado dos políticos e ideólogos inimigos. E isso será feito mesmo que os pecados dos dois lados do espectro político cometam, em determinado contexto, exatamente os mesmos pecados. Dois pesos, duas medidas. Tudo sob a desculpa de que “estamos em guerra”, “não podemos deixar o outro lado vencer” e “o muro é de Satanás”. Aqui o compromisso não é mais com a verdade e nem mesmo com os valores que se dizia defender antes, mas sim com a destruição do adversário.

O leitor já percebeu: os ídolos humanos surgem aí. A idolatria política moderna começa na transformação de um conjunto de ideias em evangelho ou religião. Termina na fé em engravatados que recebem salvo-conduto do idólatra para fazer ou dizer o que quiser em nome da guerra ideológica. Não, não é exclusividade da esquerda, da direita ou do centrão. A idolatria pode surgir em qualquer ponto do espectro.

O resultado da idolatria política para a teologia cristã bíblica é catastrófica. Não só Cristo é destituído de seu trono no coração do crente, como a Bíblia e o cristianismo passam a ser usados como meros objetos úteis para a luta política. Da mesma maneira, os políticos e ideólogos alvos da idolatria de seus seguidores passam a usar a Bíblia e o cristianismo como meros objetos úteis para se manterem na posição de divinos profetas ou até Messias. Cria-se uma nova teologia, absolutamente terrena e distorcida, que não transforma corações, não gera mudança interior, não evangeliza, não perdoa, não se arrepende, não ama o próximo, não pensa no céu, não olha para o alto, não tem devoção genuína a Deus. Uma teologia que odeia, que briga, que xinga palavrões. Uma teologia carnal e sem compromisso real com a Bíblia.

Como é evidente, idólatras políticos de facções opostas costumam a entrar em conflito direto uns com os outros. E é aqui que o Diabo faz a festa. A briga de facções é a melhor forma de manter cada um dos lados convicto de que está fazendo um grande bem espiritual para si e para todos. Ele acha que o simples fato de lutar pela sua visão política ferrenhamente faz dele um cristão, um defensor do evangelho genuíno e um adorador. O cristão idólatra esquerdista pensa que é cristão por lutar em prol de um Estado que presta assistência ao próximo, ser tolerante com minorias, apoiar políticos, partidos e ideólogos que pensam assim e combater os monstros da direita. E o cristão idólatra direitista pensa que é cristão por lutar em prol de um Estado mais enxuto, ser favorável a uma Lei mais rígida e igualitária, apoiar políticos, partidos e ideólogos que pensam assim e combater os monstros da esquerda. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Em suma, tudo o que a idolatria política de esquerda faz, a idolatria política de direita faz também. Muda-se apenas as pessoas idolatradas e o plano a ser seguido.

Nesta briga de foice entre religiosos políticos de duas facções rivais, nós nunca devemos entrar. Não há mal em defender uma posição política e saber o que está acontecendo nesse cenário. Mas o cristão deve zelar, acima de tudo, por princípios bíblicos. Fazer de ideologias, movimentos, partidos, políticos e ideólogos elementos de um evangelho terreno não passa de idolatria. E fazer uso da Bíblia para defender qualquer tipo de messianismo político é uma clara afronta a Cristo. Trata-se de traição a Deus.

Nós, cristãos, fomos chamados para proteger a doutrina bíblica e proclamar o evangelho de Jesus Cristo. É o que devemos morrer fazendo. Então, se posso deixar um conselho ao leitor, ele é: não usem Jesus só como adereço e o evangelho só como uma parte de sua cosmovisão político-econômica. Jesus Cristo deve ser o centro da sua vida. O evangelho deve preencher toda a sua cosmovisão. Pregar deve ser a sua missão. A redenção não está nessa Terra. Não está em um político ou ideólogo. Não está em um sistema político-econômico. Está em Jesus.