Por Davi Caldas

Tenho vontade de dar um curso só sobre a obra do apóstolo Paulo. A meu ver, o rabino que aceitou Jesus como o Messias prometido aos judeus (e ao mundo) é um dos autores mais deturpados e mal interpretados da história da escrita. Talvez a melhor maneira de demonstrar (ou começar a demonstrar) isso seja analisando o texto de Atos 21. Ali é possível perceber como Paulo é rotineiramente injustiçado e como boatos tem poder para destruir uma reputação.

No capítulo em questão, Paulo chega à cidade de Jerusalém com o intuito de entregar algumas ofertas à Igreja de lá. Ao chegar, Tiago lhe informa que havia muitos judeus crentes em Yeshua na cidade, mas que eles não simpatizavam com Paulo. A razão é dada no verso 21:

“[…] foram informados a teu respeito que [tu, Paulo] ensinas todos os judeus entre os gentios a apostatarem de Moisés, dizendo-lhes que não devem circuncidar os filhos, nem andar segundo os costumes da Lei”.

A primeira questão que deve ser levantada aqui é: tal informação era verdadeira? Paulo realmente ensinava os judeus a apostatarem de Moisés, não circuncidarem seus filhos e não andarem segundo os costumes da Torá? Não é o que diz a Bíblia. Tomemos, por exemplo, a questão da circuncisão.

Nas primeiras décadas da Igreja, alguns grupos fariseus que haviam aceitado Jesus como Messias começaram a impor a circuncisão aos gentios conversos. O rito estava sendo visto como um pré-requisito para ser salvo e santificado. Entretanto, Paulo e outros crentes discordavam dessa imposição. A dissensão foi tamanha que convocou-se um concílio em Jerusalém com os apóstolos e os principais líderes da Igreja para decidir se o ritual deveria ser imposto aos gentios ou não (Atos 15). A decisão do Concílio foi não impor o ritual.

Muitos cristãos imaginam que a imposição do ritual da circuncisão aos gentios era um preceito da Torá; e a liberação foi uma decisão apostólica contrária à Lei (o que provaria que a Lei foi abolida na Nova Aliança). Na verdade, é justamente o oposto. A circuncisão é instituída em Gênesis 17:9-14 como um sinal da aliança entre Yahweh, Abraão e a sua descendência física. Os únicos gentios que deveriam obrigatoriamente receber esse sinal eram os servos comprados por Abraão – presumivelmente porque passariam a viver para sempre na família e na casa do patriarca.

Não existe qualquer mandamento na Torá e nos Profetas que imponha a circuncisão aos gentios desejosos de seguir ao Deus de Israel. Também não há qualquer passagem que afirme ser o rito necessário à salvação dos que não eram judeus. Nem faria sentido, já que o sinal tinha relação primária com uma aliança étnica/nacional. Impor a circuncisão a um gentio para que ele fosse salvo equivaleria hoje a algo como impor que alguém se torne Norte-Americano para receber a graça de Jesus. Um verdadeiro absurdo. A circuncisão era apenas o símbolo da eleição nacional e funcional de Israel. Nada tinha a ver com salvação de gentios, tampouco garantia a salvação dos hebreus.

Ademais, a própria Torá já incluía o gentio na aliança sem recorrer à etnia. Yahweh já havia dito a Abraão antes mesmo de instituir o rito para os hebreus: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12:3). “Todas as famílias da terra” significa que não só a descendência de Abraão, isto é, a nação israelita, seria abençoada com a Torá, os Profetas e o Messias, mas todas as outras a partir de Israel.

É exatamente esse ensino decorrente de uma leitura correta (e até óbvia) da Torá que Paulo ressalta em Gálatas 3:8-9 e Romanos 4:9-25. Ele percebe que a circuncisão não era para a justificação, salvação e santificação. Era apenas um sinal da eleição funcional de Israel. Os gentios não só não precisavam do sinal para servir a Deus, como eram salvos da mesma maneira que os judeus: através da fé. A aliança em Gênesis 12 era um prenúncio de que gentios podiam e deviam se achegar a Deus, independente de serem circuncidados ou não. Isso no próprio Antigo Testamento.

Uma leitura nas passagens do Tanach (Antigo Testamento) que mencionam conversões de gentios, convites de Yahweh aos não judeus para o servirem, preocupação com a pregação da Palavra aos outros povos e promessas de evangelização ostensiva às nações estrangeiras é muito elucidativa. Elas nunca falam sobre gentios sendo circuncidados. Isaías 56 é talvez a passagem mais sugestiva. Yahweh se limita a solicitar dos gentios a guarda do sábado e a abstenção de fazer o mal. Se a circuncisão era requisito de entrada na fé hebraica, condição sine qua non para começar a seguir ao Deus de Israel, é pouco provável que não fosse citada em alguma passagem, sobretudo em Isaías 56, como obrigatória aos gentios. Mas o que parece é que abraçar a aliança de Yahweh, para o gentio, era ser alcançado pela benção ao Israel físico e não, necessariamente, tornar-se parte do Israel físico.

Isso de forma alguma é uma quebra da Torá, mas o cumprimento dela. A imposição da circuncisão aos gentios, seja na Antiga ou na Nova Aliança, é contra a Lei, antibíblica, oposta ao preceito divino. E a visão dela como elemento de justificação é uma aberração humana. Quando compreendemos isso, entendemos que o “partido da circuncisão” na Igreja, composto por muitos fariseus, se baseava não na Torá, mas em tradição.

De todos os problemas da Igreja no primeiro século, esse era um dos mais graves. Ele acabava por separar judeus crentes dos gentios, criando cisão na Igreja de Cristo e atrapalhando a pregação do evangelho. Por isso, o apóstolo Paulo bate nessa tecla em 7 epístolas e 12 passagens diferentes (Rm 2:25-29, 3:30, 4:9-12; I Co 7:18-19; Gl 2:12, 5:2-11 e 6:12-15; Ef 2:11; Fl 3:2-5; Cl 2:11-13, 3:11; Tt 1:10), enfatizando que o rito não deveria ser imposto aos gentios, que não fazia dos judeus pessoas mais santas e que não salvava ninguém.

A pregação de Paulo estava alinhada tanto com a Torá e todo o Antigo Testamento, quanto com a decisão do concílio de Jerusalém. Além disso, em nenhuma das passagens em que Paulo trata o assunto existe uma menção à circuncisão de crianças judias. O tema simplesmente não aparece nos escritos do apóstolo. Ou seja, a ideia de que Paulo ensinava os judeus a deixarem de circuncidar seus filhos não passava de puro boato. O apóstolo jamais disse isso.

Sabendo que se tratava de uma mentira, Tiago orienta Paulo a tomar voto (uma prática judaica) para mostrar que o boato era mentiroso. E o apóstolo prontamente aceita o conselho (vs. 22-26). O ato não produz efeito e os opositores de Paulo o prendem. Mas Paulo, consciente de sua inocência, rebate todas as acusações de que ele era um transgressor da Lei e que cria em algo distinto dos judeus e dos fariseus (At 22:3-6, 24:14-21, 25:7-11). Para o apóstolo, nada fazia dele um transgressor das leis judaicas.

É pouco provável que Paulo, um homem sem medo de sofrer e morrer por Cristo, intrépido, seguro, tenha aceitado o conselho de tomar voto e depois negado acusações de ser um transgressor da Lei, se o boato fosse verdadeiro. Não só seria uma mentira não condizente com o caráter e a vida de Paulo, como faria do próprio Lucas, seu companheiro de viagem, um mentiroso. A narrativa de Lucas dos capítulos 21 a 28 é toda construída sobre a ênfase de que Paulo era inocente de todas as acusações que os judeus haviam feito. Isso reforça que o intuito de Lucas era caracterizar Paulo como alguém que seguia a Lei fielmente tal como Jesus.

Quanto aos demais itens da Lei, é relevante ressaltar que Paulo continuou guardando o sábado (At 13:16, 13:42-22, 16:11-13, 17:1-3, 18:1-4, 18:18-19, 19:8-10), enfatizando a importância e validade dos preceitos morais da Lei (Rm 2:17-24, 7:12, 13:8-10; Gl 5:14-23; Ef 6:1-3; I Co 6:9-10) e até mesmo frequentando as festas judaicas (At 18:18, 20:16, 21:25). E igualmente não há qualquer texto, em suas cartas, onde Paulo ensine os judeus a deixarem de seguir práticas judaicas e mandamentos da Lei. O sábado, aliás, jamais foi algo exclusivo dos judeus (Gn 2:1-3; Is 56:1-8), mas um preceito para a humanidade. Isso acabava por ser mais um motivo para o apóstolo Paulo não ter incentivado ninguém a deixar de observá-lo. Assim, o problema de Paulo não era com a Lei, mas com o mau uso dela, como no caso da imposição da circuncisão aos gentios.

Não obstante, desde a época de Paulo até os dias de hoje, o apóstolo continua sendo visto por muitos como alguém que se opôs a Lei. Tanto seus inimigos quanto muitos de seus seguidores o veem assim. Como vimos, a interpretação não é correta. Isso levanta a questão: qual era exatamente a posição de Paulo em relação à circuncisão dos judeus?

Em primeiro lugar, precisamos entender o teor do Concílio de Jerusalém. O Concílio não versou sobre a questão da circuncisão entre os judeus, mas entre os gentios. Não há qualquer sinal no texto de Atos 15 de que a polêmica incluía a prática do rito entre as crianças judias de oito dias, conforme era feito há séculos. Esse não era o tema debatido e sequer foi mencionado por alto. Assim, não há razão para pensar que o Concílio Apostólico proibiu o rito entre as famílias judaicas.

Em segundo lugar, Paulo só manifesta duas preocupações em relação à circuncisão: (1) ela não deveria ser imposta aos gentios; (2) ela não deveria ser encarada como fator de salvação dos judeus ou de maior santidade. Em suma, judeus não eram melhores por serem circuncisos e gentios não precisavam passar pelo ritual. A circuncisão dos próprios judeus era uma discussão desnecessária e, provavelmente, impensada. Afinal, os adultos já estavam circuncidados desde os oito dias de nascidos. E isso em nada influenciava as decisões posteriores de cada um. Assim, o apóstolo não discute o assunto em nenhuma passagem.

Em terceiro lugar, a evidência sugere que para Paulo, um judeu tinha total liberdade de continuar agindo como um judeu, circuncidando seus filhos e participando de festas (além, é claro, de praticar aquilo que era comum aos gentios). Quando Paulo defende a ideia de que cada um deveria permanecer no seu chamado – o circunciso não deveria “desfazer” a circuncisão e o incircunciso não deveria ter preocupação em circuncidar-se (I Co 7:17-20) –, provavelmente estava se referindo não apenas ao ritual em si, mas a todo o conjunto de hábitos judaicos. Em suma, um judeu tinha liberdade em Cristo para preservar seus hábitos judaicos, mesmo os que já não eram normativos no na Nova Aliança ou que possuíam mais relação com a etnia do que com preceitos morais.

Em quarto lugar, é evidente que quando Paulo fala sobre a circuncisão sendo contrária a Cristo (Gl 5:1-4), não está se referindo ao ato puro e simples de passar pela circuncisão. Paulo mesmo circuncidou a Timóteo (At 16:3). Teria Timóteo deixado de ser um cristão por isso? Teria Paulo se contradito? Não. A circuncisão contrária ao Messias era aquela imposta aos gentios como meio de salvação. Quando o apóstolo efetua o rito em seu discípulo, não o faz por crer que Timóteo só seria salvo dessa maneira, mas sim para facilitar a pregação do evangelho. Já que alguns judeus faziam questão de pregadores circuncisos, Paulo destruiu ali qualquer argumento prévio contra o seu discípulo.

Em quinto lugar, é possível que Paulo entendesse que o rito da circuncisão ainda tivesse valor para judeus. Não valor no sentido da salvação, mas no sentido de sinal da eleição de Israel como povo étnico de Deus. Isso é indicado no fato de que Paulo considerava que Israel não foi rejeitado (Rm 11:1-2), os dons e promessas de Deus são irrevogáveis (Rm 11:28-29) e a nação seria salva no tempo do fim (Rm 11:25-27) – o que demonstra que para o apóstolo ainda existirá Israel como a mesma entidade étnico-religiosa no final. Tendo isso em mente, a circuncisão poderia ser vista pelo apóstolo como um rito importante para a manutenção da identidade hebraica/judaica e, por conseguinte, da memória da aliança de Yahweh com os judeus.

Portanto, para Paulo, a circuncisão só se torna um mal quando (1) é entendida como fator de salvação/santificação; (2) é imposta aos crentes gentios por essa mesma razão; (3) se torna barreira para a pregação do evangelho. Afora isso, o apóstolo não tinha razão para se opor à cultura centenária de judeus circuncidarem seus filhos pequenos.

De fato, sempre que nenhum princípio moral/espiritual estava em jogo, Paulo se adequava à cultura dos que queria alcançar, fossem judeus ou gentios (I Co 9:19-23). Não era seu interesse impor a circuncisão aos gentios, nem a abstenção da circuncisão aos judeus. Paulo e todos os apóstolos e primeiros cristãos eram circuncisos e isso em nada mudava suas vidas espirituais. Então, por que o apóstolo criaria problemas em relação a isso? A mesma postura servia para o caso das festividades israelitas, que eram práticas tipicamente judaicas no sentido étnico. Se não atrapalhava o evangelho, não havia problema.

É notável que a posição de Paulo era a mesma da Igreja de Jerusalém. Quando este chega à cidade, em Atos 21, Tiago lhe diz que os gentios da Igreja já estavam cientes da decisão do Concílio de Jerusalém (At 21:25). Ou seja, a Igreja de Jerusalém acatava a decisão do Concílio de não impor a circuncisão aos gentios. Paulo era perseguido por mero boato.

O que isso nos ensina é que boatos podem atravessar tempos e lugares. O que se falava de Paulo em Jerusalém no primeiro século continua sendo alardeado até hoje, não só pelos inimigos do evangelho, mas por aqueles que aceitaram a Cristo. Diversos cristãos verdadeiros continuam creditando a ideia de que Paulo era um indivíduo antinomista e antijudaico. Como resultado, cria-se um evangelho distorcido, distante do que tanto Paulo quanto Cristo pregaram. O antídoto contra isso? Mais estudo sério da Bíblia, com atenção, honestidade, critérios básicos de interpretação e lógica. Só existe Sola Scriptura quando estes fatores são observados.

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