Idolatria à político e fé em ideologia não são coisas de cristão, quer tais políticos e ideologias estejam à direita, à esquerda ou ao centro. Esse é o tipo de obviedade que não deveria ter de ser dita aos que conhecem a Bíblia e o evangelho. Mas já que a realidade é diferente do ideal, fazemos aqui o trabalho de bradar o óbvio.
É curioso, mas quando tiramos Cristo do foco, imediatamente aparecem outros candidatos a Cristo no nosso inconsciente. Cada qual com seu próprio evangelho. O cristão de esquerda se perde de modo mais evidente. Ele pode, por exemplo, abraçar o marxismo, passando a substituir o problema do pecado pelo problema da luta de classes; a redenção vindoura de Cristo no céu por uma redenção terrena através de movimentos políticos. Defender partido vira parte do evangelho e andar com esquerdistas secularistas sem a menor intenção de pregar o evangelho passa a ser rotina.
O cristão de esquerda pode se perder no feminismo também, crendo que a defesa da mulher é devida aos coletivos feministas (de maioria secularista e anticristã) e que para defendê-la é preciso ser feminista. Ou seja, o evangelho não pode fazer isso sozinho. Ao aceitar esses falsos evangelhos, aceita-se outras doutrinas espúrias como aborto, homossexualidade, sincretismo religioso, liberalismo teológico, etc.
O cristão de direita se perde de maneira mais sutil, porém igualmente corrosiva espiritualmente. Ele pode, querendo conservar a família, os valores judaico-cristãos e a religião, passar a olhar isso como uma panaceia. Ainda que não reconheça isso em palavras, pensa e sente que essa defesa fará o mundo tão bom quanto o que ele almeja, ainda que não perfeito. E, nesse momento, o inimigo deixa de ser Satanás e passa a ser quem se opõe ao que ele quer conservar. Pronto. Ele se tornou um ideólogo. Ele transformou uma postura boa, que emana do evangelho, em uma ideologia. Já não sabe mais o que é evangelho.
O mesmo pode acontecer com quem coloca todas as esperanças em uma economia livre, fazendo do mercado um deus, e flertando com um materialismo tão destrutivo espiritualmente quanto o materialismo marxista. O materialista capitalista e o materialista marxista são dois lados da mesma moeda. Chersterton foi um dos grandes autores que percebeu isso. E Lewis já asseverava que Satanás cria dois extremos antibíblicos e brinca de levar os cristãos de um lado para o outro.
Em suma, eu posso me perder no evangelho marxista e também em algum evangelho antimarxista. A defesa do que é certo se perde quando ela passa a ser vista como uma panaceia. E ela se torna uma panaceia quando Cristo já não é o foco, quando a Palavra já não é mais suficiente.
A ideologia e a ideologização nos cegam. A ideologia é capaz de nos fazer criar passados e futuros utópicos, fantasiosos e absolutamente antibíblicos. E passamos a nos guiar por eles e seus líderes. Quando ideologizamos, projetamos nossos valores no tempo e passamos a entender que o mundo era bem melhor de uma determinada forma e será bem melhor quando voltarmos a ela. Sem querer, nos tornamos aquilo que queremos combater: engenheiros sociais.
Toda ideologia é, no fim das contas, uma tentativa de salvar a si mesmo e aos demais por meio das obras. É uma tentativa de criar nossa própria redenção, nosso próprio novo mundo, de fazer nós mesmos a última grande batalha, vencendo os inimigos. Ideologia é religião. E o ser humano tem o inacreditável poder de transformar em ideologia tudo aquilo que toca quando Cristo deixa de ser o centro de sua vida. Neste ponto, até mesmo o que é bom e virtuoso se torna vício. Nossa justiça é trapo de imundícia (Is 64:6). Absorvente usado.
O problema é que desde o Éden, muitos caímos no conto satânico de que a Palavra de Deus não é suficiente. É como se houvesse em alguma pessoa, algum grupo ou alguma filosofia que traz à nós algo que Deus não pode trazer. O evangelho de Cristo deixa de ser visto como fundamento, como base, coluna, fonte para tudo o que é bom.
“É certo que não morrereis”, disse Satanás por meio da serpente. “Porque Deus sabe que no dia em que dele [o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal] comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3:4-5).
Há nesse relato um fato muito relevante a respeito do modus operandi predileto de Satanás há milênios. Ele mistura verdades à mentiras, fazendo o erro parecer bom, belo e justo. De fato, Eva não morreu no momento em que comeu do fruto proibido. E realmente a árvore lhe deu um tipo de conhecimento do bem e do mal que não possuía antes. Verdades. Mas Satanás não disse a Eva que sua relação com Deus morreu naquele momento e que, por consequência, sua perfeição moral, espiritual, emocional e física. Não informou que naquele momento cada célula, tecido, órgão e sistema do seu corpo passou a envelhecer, enfraquecer e rumar para a morte completa.
A oferta de Satanás foi tentadora porque continha uma verdade: Eva teria, ao comer o fruto, um conhecimento que não tinha antes. E ela o teve. Conheceu na prática o que é ser morta espiritualmente e rumar para a morte física todos os dias. Mas há nessa verdade ao menos uma mentira entranhada: a de que ter esse conhecimento é bom. Não é.
O mesmo padrão se repetirá por toda a Bíblia, inclusive no Novo Testamento. Em Mateus 15:3, por exemplo, veremos Jesus Cristo repreender fariseus por seguirem tradições humanas em lugar dos mandamentos de Deus. E em Colossenses, só para citar mais um caso, veremos Paulo combatendo um protognosticismo que misturava o evangelho à busca pela gnose secreta (Cl 2:1-23).
Em todos esses casos, Satanás vendeu a ideia de que a Palavra de Deus e o evangelho de Cristo não são suficientes. É preciso algo mais, um conhecimento que faltou nas Escrituras, uma tradição humana bem intencionada, uma muleta ideológica, um fruto proibido. Que mal pode haver? É a oferta permanente do Diabo.
Milênios depois, de Eva, dos fariseus e dos protognosticos de Colossos, Satanás continua fazendo exatamente a mesma coisa. E nós continuamos a cair. Mudam apenas os frutos proibidos. “Coma do feminismo”, “coma do marxismo”, “reverencie o mercado como remédio para tudo”, “olhe para o conservadorismo como se fosse o evangelho”, “você precisa ser de esquerda para ser cristão”, “você precisa ser de direita para ser cristão”, “nossa esperança é tal e tal político, tal e tal partido”, “a culpa é toda da esquerda”, “a culpa é toda da direita”, “o inimigo é o burguês”, “o inimigo é o comunista”. Satanás está brincando com todos.
Não precisamos de nada além do evangelho. E isso não é tentar dar uma de neutro, de isento. Eu, Davi, sou de direita e assumo isso. Mas se hoje sou de direita, isso se dá por mero acidente. Por ser cristão, acabo por querer conservar determinadas coisas que, por acidente, a direita também quer (e rechaçar coisas que, por acidente, a esquerda aceita). Isso me joga para a direita no campo político. Negar o rótulo não muda o conjunto de ideias em que creio. O problema não é ser de direita, mas sê-lo por princípio. No momento em que meu principio não for mais o evangelho, no momento em que ser de direita não for mais um mero acidente, e sim um fim em si mesmo, eu perdi o evangelho de vista, eu ideologizei minhas posições.
O cristão precisa entender que a fonte de toda a sua cosmovisão é o evangelho de Cristo e a Bíblia Sagrada como um todo. Sola Scriptura, lembram? Eu, Davi, não defendo as mulheres porque sou feminista. Eu defendo as mulheres porque sou cristão. Eu não defendo a propriedade privada porque sou de direita. Eu a defendo porque a Bíblia não a condena, mas a apoia e a pressupõe. Eu critico a ideia de uma revolução para mudar o mundo não porque sou de direita, mas porque a Bíblia diz que o mundo não será mudado, que minha esperança deve estar em Cristo. Eu defendo o amor e a assistência aos desfavorecidos não porque sou de esquerda, mas porque sigo a Cristo e Ele agia dessa forma. Eu defendo a punição civil aos criminosos não porque sou de direita, mas porque isso é ser justo e a Bíblia me ensina a justiça civil.
O evangelho é anterior às posições políticas modernas. Anterior e superior. Se eu me enquadro em alguns recortes da realidade (como o recorte “de direita, conservador nos costumes, liberal na economia”), não o é por tomá-los como princípios, mas por acidentalmente minhas convicções cristãs se coadunarem com os mesmos em aspectos relevantes. Posso aceitar ser enquadrado por esses recortes enquanto eles não me dominarem, enquanto minha fé estiver fundamentada apenas e tão-somente na Palavra, enquanto eu compreender que não devo nada a nenhuma filosofia, movimento ou grupo secularista, mas apenas ao evangelho.
É isso que está sendo perdido entre muitos dos jovens cristãos hoje (pelos de esquerda, de modo bastante evidente e escancarado, mas também por alguns jovens de direita, de maneira mais sutil). A pergunta que se deve fazer sempre é: posso dizer a mim mesmo, sem mentir, que o evangelho de Cristo e a Palavra de Deus são suficientes para mim? Ou eu creio que preciso de algo mais? Ou eu me sinto devedor de algo que não tem raízes no evangelho? A Escritura é suficiente para mim ou eu também preciso de movimentos, grupos, candidatos, filosofias, políticos? Qual a minha esperança? É o retorno de Cristo ou uma revolução cultural, uma eleição, um combate aos adversários ideológicos, uma mudança nas leis?
Meus esforços tem sido sempre não no sentido de levar jovens de uma ideologia à outra, mas de se verem livres desse câncer. Não devo nada, absolutamente nada à direita, ou à esquerda, ou ao centro. Não são a essas posições que preciso ser leal. Não é com base nessas posições que devo enxergar a realidade. Não são seus representantes (quer sejam intelectuais, candidatos à política ou políticos consolidados) que devem exercer liderança intelectual e espiritual sobre mim, mas sim, Cristo, por meio da sua Santa Palavra.
A direita, na qual me enquadro por acidente, não deve ser o meu evangelho. Seus políticos são humanos, “príncipes, nos quais não há salvação” (Sl 146:3-4). Suas ideias, na melhor das hipóteses, apenas são aplicações parciais e incompletas do que aprendi no evangelho e que devo apenas a ele. Pode se dizer o mesmo da esquerda. Não é do feminismo ou do marxismo que cristãos fiéis ao longo de séculos tiraram inspiração para fazer o que é correto. E não são dessas filosofias espúrias que devemos tirar qualquer coisa hoje. Nada do que seja bom já não está baseado antes no evangelho de Cristo Jesus. E bem fariam todos os jovens se buscassem estudar como o evangelho sempre levou cristãos genuínos a impactarem positivamente o mundo. Este exemplo permanece para nós. É o que também devemos fazer.
Qual tem sido o seu evangelho? Pelo o que você tem suspirado, esperado, lutado? Por Cristo? Pela Sola Scriptura? Pelo estudo cuidadoso, consciencioso e humilde do texto bíblico? Pela santificação em Cristo Jesus provida pelo Espírito Santo? Pela religação com o Pai? Qual tem sido o seu inimigo? A sua própria carne? Seus maus hábitos? Os demônios que instigam a carne? O pecado? A ignorante bíblica? Ou será que temos suspirado mais é depositado confiança em ideologias, políticos, partidos, grupos, movimentos, eleições e na destruição da esquerda ou da direita?
Não é preciso ser neutro, isento, para questionar isso. O Diabo é mestre em nos fazer agarrar algumas coisas boas, derivadas de Deus e Sua Palavra, mas sem Deus e a Sua Palavra. Lembre-se que a árvore do fruto proibido chamava-se “Árvore do conhecimento do bem e do mal”. Há bem na árvore do pecado. Mas Deus não está ali. Será que é demais fazer um autoexame constante para averiguar se não estamos comendo de frutos misturados e achando que está tudo bem? O convite de Deus é que comamos da Árvore da Vida. É suficiente para você?
agosto 15, 2018 at 12:51 pm
Parabéns pela redação e perspicácia. SImplesmente incrível.
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